segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

SEIS ANOS EM UM INVERNO DE SOL

2015 foi o ano em que completei 40 anos de idade. Cumpro minha promessa de comemorar o meu aniversário de volta à minha terra, da qual eu me afastei voluntariamente por seis anos. Mais importante que essa volta, foi esse período longe.

Muito fui questionado quando me decidi por ir morar em Fortaleza por um tempo. Muitos acharam que eu iria para não mais voltar. Outros tantos acharam que, uma vez lá, eu permaneceria. O que posso dizer é que, por mais que duvidassem, o meu retorno era a pedra fundamental da minha ida, e nunca houve como essa decisão ser modificada, não importando os fatores (e isso teve um custo).

Esse período, que foi para mim ao mesmo tempo exílio e retiro, me foi fundamental para uma retomada de certos pontos na minha vida. Nunca tive como objetivos me reinventar ou me reconstruir, mas me reformar, executar certos consertos essenciais para que eu pudesse colocar as coisas em seus devidos lugares e esta arrumação só pode ser feita agora, após minha volta.

Hoje, talvez (e ainda com algum receio de ser mal compreendido), posso responder a uma pergunta que invariavelmente me era feita enquanto morava em Fortaleza: "Você gosta daqui?". Há duas verdades que respondem a isto: 1. Gostar ou não da cidade nunca teve muita importância, o que, consequentemente, fez com que eu não me importasse em gostar ou, menos ainda, me importasse em criar algum vínculo afetivo com o local e 2. Fortaleza é uma cidade até bonita, litoral etc., mas com indisfarçáveis problemas como um racismo e um machismo tão transparentes e expostos que chegam a assombrar tal a "naturalidade" de certas situações. Nunca houve como eu gostar de Fortaleza, mas tive muita sorte de me cercar das pessoas certas e é o momento de falar delas.

Cada pessoa com a qual eu interagi nessa cidade foi fundamental no meu processo de retomada. Eu tinha que ser mais correto, mais centrado e mais humano do que eu jamais fora. Ninguém sabia quem ou o que eu era. Para todos, assim como para a cidade, eu era apenas "alguém de fora". Ter a consciência disso gerava o cuidado redobrado de saber onde pisar e o que dizer, não que com isso eu me visse forçado a, o tempo todo, "pisar em ovos", embora o começo tenha sido realmente assim,  mas aprender se perceber como "o outro" me fez ter muito mais sensibilidade ao também enxergar o outro como alguém que tem uma historicidade que eu desconheço e devo respeitar.

Entre algumas mudanças, Fortaleza é a cidade onde eu deixei de ser "músico" para me tornar apenas "o cara do violão". Mas me tornei mais professor, então a balança equilibrou.

Na continuidade deste lidar eu fiz contatos,  amizades sinceras, me encantei, me apaixonei, amei e até fui amado. Muito. Cada pessoa com quem estive pode ter a certeza de que, no que depende da minha vontade, jamais será esquecida, por mais que os momentos que tenhamos compartilhados tenham parecido, a uma visão menos atenta, fugazes ou irrelevantes. Não foram. Trago todos comigo e a saudade ficará, cada um em seu devido grau, com a sua devida importância. Cada um de vocês trouxe um bocado de luz e calor neste período de inverno da minha alma, ainda mais brilhantes que o sol da "Terra da Luz".

Já faz seis meses que voltei e ainda não consegui rever boa parte dos amigos daqui. Por uma série de motivos, ainda não foi possível. Alguns desses motivos fazem parte justamente desse processo de retorno. Eu nunca menti para mim mesmo que seria fácil, que seria tranquilo. Mas eu os reverei.

Alguns eu não poderei rever porque foram para outros pousos ou, como se diz eufemisticamente, "se foram". Destes, a impossibilidade de ter me despedido sempre será muito dolorida, especialmente por não estar junto dos amigos em comum e não ter com quem compartilhar e mesmo aliviar essas perdas.

Mas estou de volta à mon pays, onde, como eu costumava dizer, "eu não preciso saber o nome das ruas, pois as ruas já sabem o meu nome". E as ruas e as pessoas me conhecem, com toda a minha história e, consequentemente, meus erros e defeitos. Espero que ainda me reconheçam. Espero ter conseguido voltar melhor. 

Eu poderia continuar muito mais, mas eu só quero agradecer a cada um que esteve comigo neste tempo de partida e retorno, que foi para mim como um grande ano que durou exatos 2.273 dias. 

Nos reveremos, de algum modo, em 2016. Enfim, um novo ano, em que o novo e o já estabelecido ganharão nova amálgama. Que o novo surja e que o passado nos dê base. Hora de conferir de verdade se "a vida começa aos 40". Estou acreditando que, se não começa, pelo menos se renova.

Conto com a ajuda de vocês.

Beijo do velho.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

CAUSA E INCONSEQUÊNCIA

Muitas coisas acabam ficando no imaginário coletivo como indissociavelmente relacionadas de um modo que chega a ser nocivo.
Ah, a tranquilidade de poder gostar sem querer para si é um conforto que poucos hoje sabem ter. O querer bem sem a necessidade do desejar é um tipo de liberdade de sentimentos tremendamente pacificadora.
Chego a pensar que talvez seja este o real significado do tal "desapego" que tantos por aí apregoam e que eu só consigo ver mensagens egoístas e hedonistas de desconsideração ao outro enquanto igual.
Aparentemente, as pessoas conseguiram desassociar o desejo do sentimento, mas só em uma via. Pode-se desejar sem querer vínculos, mas esquecem de qualquer possibilidade além, mesmo que seja um processo de três fatores: o gostar, o querer e o “não”. Assim (por favor, me corrijam os especialistas em cálculos de possibilidades), há pelo menos quatro grandes possibilidades, não apenas duas. E deve-se lembrar inclusive que, em qualquer uma das configurações possíveis, há que existir a concordância plena do outro, especialmente no “não”.
Gostar é bom, faz bem. Desejar também é bom. Acredito realmente que o problema não está no desejar, mas como isto tem sido propagado e feito. Como lidar com o querer em um mundo em que em que tudo é potência e explosão e que preconiza a posse e a auto-satisfação acima de tudo? É um exercício constante, mas quando dá certo, a alma voa.
Queria poder voar tantas vezes quanto me fosse possível, mas nem sempre posso negar ser eu também parte do hoje.

Por enquanto, me basta estar satisfeito em lembrar que gostar e querer não seguem uma relação obrigatória de causa e consequência.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

O SONO DOS JUSTOS


Há alguns dias, uma nova amiga, em um momento de desabafo (por conta de uma decepção com alguém e problemas decorrentes disto), pergunta "deve ser muito ruim saber que voê errou feio com alguém, né?". Mesmo sabendo que se tratava de uma pergunta retórica, que não precisava de mais que uma resposta que cumprisse a função fática, ou seja, permissiva para a continuidade da fala, meu ímpeto foi o de dizer "sei como é isso melhor do que ninguém", mas não o fiz, inclusive porque ela precisava dar prosseguimento ao seu desafogo e à sua catarse.
Pouco tempo depois, uma dessas pessoas com as quais eu já "errei feio" me fez uma pergunta de sopetão. Para ela a questão fora corriqueira e até inocente, mas houve uma lacuna de contextualização que me congelou por me rememorar tais erros. Só depois eu fora esclarecido que o contexto da pergunta era outro, mas é isso que é ter a consciência do erro.
E tempo todo, em nossos dias, inclusive hoje, vemos uma exacerbação do ser feliz em sua forma mais egoísta e imediata. A regra (que não é nada nova, não é, Piaf?) é a do “je ne regrette rien”. Vou na contramão. Faço questão dos meus arrependimentos. Não os esqueço, sob o custo de cometer os mesmos erros e ainda assim os cometo. Eu gostaria de verdade de achar que, como diz a canção, “eu não posso causar mal nenhum a não ser a mim mesmo”, mas eu sei que tenho capacidade de fazer males a outras pessoas também e já fiz, e boa parte delas ter sido descuido, desleixo ou algo realmente involuntário não me exime da tomada de consciência, o que se dirá do que eu já tenha alguma noção ao fazer. E há dias em que os principais erros pesam de forma mais contundente
É-me estranha uma sociedade em que todos são tão únicos e tão especiais... mas isso tampouco chega a ser alguma novidade, não é mesmo, Fernando Pessoa? Quem dera a mim também ouvir de alguém a voz humana que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; que contasse, não uma violência, mas uma cobardia... Estou igualmente farto se semideuses inimputáveis. que contasse, não uma violência, mas uma cobardia... Estou igualmente farto se semideuses inimputáveis.
Mas não, nem tudo é só arrependimento. Há momentos dos quais há o que se orgulhar e, na maior parte do tempo, a ambiguidade e o nada. Mas esses ficam para um outro dia, um outro texto. Hoje eu fico com o que me arrependo e revendo onde e com quem eu posso ter errado, justamente para poder tentar me melhorar. E, ainda assim, saber que só poucas vezes isso dá efetivamente dá certo.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

NO MEIO DA NOITE

Sou do tempo de esperar o telefone tocar. A verdade é que hoje em dia nem sei mais se é certo dizer "tocar"; eles vibram, chiam, apitam, assobiam, piscam... e nem mais é preciso atender, pode-se apenas ler as mensagens, ouvir os recados, verificar as notificações, todas perfeitamente identificadas, sem um traço de mistério na autoria... As tecnologias evoluem e modificam os processos e atos, mas o efeito permanece e o ponto de partida também: alguém em um determinado momento, tão inesperado quanto previsível, resolve dizer o que estava contido por vergonhas, inadequações ou o simples e angustiante "não saber o que dizer".

Quando acontece, é quase sempre durante os fins de semana, invariavelmente nas madrugadas. O autor normalmente se encontra em um estado psicológico atípico: um instante imediatamente após uma ocorrência traumática ou, mais comumente, um estado de razão alterada por estímulos químicos externos (ou tão-somente "embriaguez").

A emissão habitualmente gera um sentimento de culpa e constrangimento posterior logo na manhã seguinte. "Eu não deveria ter feito isso" é uma certeza ao se lembrar e se dar conta do feito.

Já ao receptor as reações não são tão típicas a ponto de ser possível descrevê-las em uma breve lista, menos ainda os momentos de recebimento das mensagens. Pode-se estar simplesmente dormindo - o que é uma sorte se o telefone estiver desligado ou sem som-, pode-se ver os recados deixados ao amanhecer (já acrescidos dos pedidos de desculpas); pode-se estar com o novo affair, o que configuraria o pior dos cenários (não... o pior seria este ainda atender o telefonema); pode-se estar em uma festa e o recebimento das mensagens se tornar motivo de chacota alheia... possibilidades mil, enfim.

Porém, algumas poucas dessas tão plurais variáveis encontram terreno oportuno e, apesar da vergonha do depois, de algum modo florescem.

Pode ser um telefonema às três da manhã com uma conhecida voz dizendo "eu só queria dizer que te amo" ou uma mensagem de texto que nem precisaria ser identificada dizendo "eu ainda penso em você". Certas vezes pode até ser uma confissão codificada no meio de uma conversa contando com a não compreensão do receptor e essa intenção acabar sendo frustrada por ele e algumas vezes pode ser bem mais simples... às vezes o inesperado surge e "só queria dizer... sei lá... 'oi'", como quem conta com o seu ombro para um alento (sem fazer perguntas).

Já fui tanto emissor como receptor e, em cada um desses papéis, segui caminhos paralelos e opostos. Todas as emissões resultaram no esperado arrependimento... acontece. Porém sempre tive a sorte de receber tais recados, sejam mais passionais e exagerados ou suaves e contidos, em momentos nos quais eu não apenas podia recebê-los sem ônus como, por vezes, chegavam a ser bem vindos como respostas aguardadas de perguntas igualmente nunca feitas por vergonhas, inadequações ou o simples e angustiante "não saber como dizer".

Algumas vezes essas mensagens surgem quando se está no meio do processo de escritura de um texto sobre como elas acontecem. Um tipo especial de coincidência. Alguns chamariam de "destino".

E lá se vão nove parágrafos.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

DESABAFO



Nunca pensei em deixar o Brasil. Até agora. Tenho pensado nisso nos últimos dias. A razão disso? É justamente a palavra que resume a falta de razão: Medo. E não é o “medo de assalto” ou “medo da crise” ou “medo do desemprego”. Esses problemas aí eu já passei por todos eles e, muito infelizmente, já estou vacinado. Meu medo hoje é outro, é um que nunca pensei que fosse ter e que chega até a ser comparável com a minha fobia de alturas. Estou com medo de quem costumava ser meu semelhante.

Estou com medo de uma corrente de ódio e ignorância que vem sendo alimentada há mais tempo do que me lembro, mas que agora explode e sinto dificuldades de ver um ponto de retorno.


Estou com medo do ser humano médio da sociedade brasileira.


Estou com medo de ser apedrejado por não professar uma fé majoritária cujos adeptos acham que têm o direito de exterminar aqueles que não lhe são iguais e ainda haver quem defenda quem apedreja [1].


Estou com medo de encontrar meu irmão na rua, pois a primeira coisa que sempre faço é dar-lhe um beijo, e as pessoas nos atacarem por estarmos indo contra um código de moral e bons costumes que impede que pessoas se beijem, mas permite que pessoas agridam outras em nome seu nome [2].


Estou com medo de ser agredido por conta de ser confundido com alguém a partir de um boato qualquer na Internet e não ter chance de defesa física [3] ou moral [4].


Estou triste e com medo de ver gente com quem cresci defendendo assassinatos e linchamentos e se colocando ao lado de quem não tem o menor resquício de racionalidade, como repetidores automáticos de bordões que apelam para seus lados mais obscuros e os traz à tona: a nossa animalidade, a nossa irracionalidade. A nossa cegueira alimentada por barões da guerra.


Estou com medo por ver colegas atropelando a ética por status e lucro.


Estou com medo por ver os que deveriam ser meus parceiros ideológicos se rendendo igualmente a essa bola de neve que odeia por simplesmente odiar o que não lhe é igual e transformar tudo, seja uma dieta ou uma preferência de estilo literário, em religiões fundamentalistas que demonizam quem não lhes são seguidores, o que se dirá das assumidas e sectaristas religiões.


Estou triste por não conseguir mais eu mesmo ter a paciência necessária para tentar argumentar com quem se encontra nessa histeria coletiva, a quem só faltam rastelos, foices e tochas em punho para se configurar uma turba medieval.


Estou cansado de ver gente que acha que algumas pessoas tem que passar por todo o tipo de provas das mais humilhantes só para fracassarem e que isso justifique os dedos sempre apontados os chamando de incompetentes.


Essa entropia, causada e alimentada por séculos de estratégias de poder, é a nossa ruína. Não quero ir embora por causa dos políticos. Eles não são nada mais que os mais legítimos representantes do povo do nosso país. Maniqueistas, manipuladores, trapaceiros, egoístas e corruptos. Eu só não quero mais fazer parte disso, pois nunca fiz, mas tentava fazer alguma diferença mínima e nem isso quero mais...


Porém eu estou pessoalmente em uma fase de recomeços. Talvez eu ainda consiga algum novo oxigênio ao estar em contato com novas pessoas e um tanto mais do renovar da juventude da gente da minha terra. Talvez seja só uma fase. Talvez eu ainda consiga algum fôlego, afinal deixar de acreditar na capacidade do ser humano de ser melhor é deixar de acreditar em mim mesmo.


Por favor, me ajudem a perceber que a minha desesperança é um tremendo equívoco.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

ENGANO (?)


"Então acabou tudo mesmo entre a gente?" dificilmente pode ser considerada a frase ideal para ser a primeira do dia, ainda mais se ouvida pelo telefone, equipamento que você pública e notoriamente detesta...

Aí você esboça uma resposta: "Como?", e ela responde do outro lado da linha: "Ah, desculpe, foi engano" e desliga. Você, ainda atordoado pela surpresa, desliga, olha para a tela do celular e percebe que o aparelho não reconhecera o número. É, foi um engano mesmo. Coitado do tal que irá encarar uma DR antes das oito da manhã.

...mas eu acho que conheço aquela voz.

sábado, 23 de maio de 2015

DESENHO N° 1

A princípio, eu também não via. Nem teria como. Mas a indagação era sempre a mesma e a resposta elucidadora era frustrada a quem havia errado e frustrante a quem perguntava, por não conseguir exprimir sua ideia. Não se podia atribuir culpa a nenhum dos lados; duas visões destoantes do mundo e da realidade que precisavam ser mediadas. Mesmo eu compreendendo as razões de ambos, eu não conseguia ver o que nenhum concluía ou demonstrava. Eu não via. Nem teria como.

Eu entendia as vozes encorpadas que respondiam e a insistente que perguntava e depois explicava. Apesar do que se queria que se visse, não era um chapéu; apesar do que se percebia, era uma jiboia. Mas eu não via. Nem teria como.

Foi quando a ação do tempo, lenta como lhe convinha e a situação, crescentemente claustrofóbica e sufocante como deveria ser me deram a clareza da compreensão. Eu não via. Nem teria como.

Eu era o elefante.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

O Elevador





"Ora, quem é que não sabe
O que é se sentir sozinho,
Mais sozinho que um elevador vazio?"
(“Blues do Elevador” - Zeca Baleiro)


Já percebia que havia algo estranho... não... não estranho... “diferente” quando pegava aquele elevador, mas não sabia identificar o que seria aquilo, era apenas uma sensação.

Em um primeiro momento, pensava ser só o fato de ser um prédio diferente, talvez a localização tão litorânea causasse algum efeito atmosférico, talvez fosse apenas questão da falta de costume com o prédio... mas não. A sensação permanecia. Algo estava acontecendo.

Com o passar do tempo, prestando mais atenção aos detalhes, percebera que o relógio do elevador nunca estava certo. Algumas vezes a diferença era de alguns minutos, outras vezes era até de horas, chegando a ser um horário de um outro período do dia. Os elementos se somavam, mas ainda não faziam sentido.

Um dia, ao entrar no elevador com o fone no ouvido, escutando um desses rocks setentistas cheios de firulas instrumentais e logo após ter lido uma notícia sobre a série televisiva inglesa Dr. Who, a ideia surge em tom de piada na mente e causa riso. Aquele elevador era uma máquina do tempo. Hahahaha!

Mas... e se houvesse alguma possibilidade de algo tão esdrúxulo ser real? Pensar assim fez com que isso fosse tomando forma na cabeça, não de uma forma preocupante, mas até lúdica. Explicações tão dignas dos piores filmes “B” quantos dos maiores clássicos da ficção científica.

O que não dava para imaginar era que essa ideia quase boba, quase saída de alguma história em quadrinhos era a mais simples verdade. O elevador era uma máquina do tempo, mas só agia sob determinadas condições e tinha algumas peculiaridades.

A viagem no tempo se dava da seguinte forma: Quando as portas do elevador se fechavam, o seu interior e o seu exterior passavam a ser tempos diferentes. Enquanto suas portas estivessem fechadas, seu ambiente interno era levado para um outro período, aleatoriamente. Poderia ser o passado ou o futuro, alguns segundos ou séculos para frente ou para trás. Sempre que parava em algum andar para entrada ou saída de pessoas, ao se abrirem as portas a sincronização com o tempo exterior se restabelecia. O tempo não se distorcia, apenas se transferia para outra época.

Não sabia se mais alguém que pegasse aquele elevador fazia alguma ideia de que isso acontecia ou mesmo se partilhava da mesma sensação. Falar sobre isso seria loucura. Mesmo sem falar, já seria loucura. De todo modo, era melhor pegar o elevador sem mais ninguém.

Mas como aproveitar estar no ano de 1208 ou em 3425 se não havia como sair daquele cubículo cromado de 110 x 90 cm? A única coisa que se podia fazer era respirar e pensar... e torcer para que a viagem não fosse interrompida em nenhum andar em que a porta se abrisse.

Essa subida para o seu apartamento sempre foi um momento muito bem vindo de irrealidade em todo o tempo-espaço.

“Entro no elevador,
Aperto o 12, que é o seu andar,
Não vejo a hora de te reencontrar
(“All Star” - Nando Reis)

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Paisagem Urbana


Estava esperando o dia certo para aquela foto, já planejada. Seria o retrato da solidão, da desolação, do isolamento, da perda de contato da hodiernidade construída por concreto, asfalto e tecnologia.

Já havia algumas semanas que ele havia percebido aquele cenário. Uma velha praça no meio de um dos bairros mais movimentados da cidade. Já não era mais frequentada para passeios, só era usada, em uma de suas bordas, a que ficava na avenida principal, como ponto de ônibus, mas seu interior mal era tido como mero corte de caminho para alguns, o que se dirá alguma pausa.

O dia era aquele. Amanheceu muito nublado, o ar estava naturalmente cinza (se é que se pode atribuir à natureza o tanto de poeira suspensa no ar), por volta das 10 horas a luz estaria no ponto certo. Não usaria nenhum desses filtros e calibrações posteriores da fotografia atual. As cores esmaecidas seriam exatamente o que a lente captaria. Seria um refugo orgânico registrado por um equipamento analógico e divulgado em meio digital.

O velho banco de concreto, esquecido e com algumas pichações, era o personagem escolhido para refletir todo esse desamparo.

Lá estava o tripé apontado para o alvo, quase tudo verificado, apenas uma decisão restava a ser tomada na hora, se seria melhor fotografar com o vento dando um efeito de movimento nas folhas ou esperá-las assentarem para o clique. Um único clique.

Então aparece aquele casal, sorridente, com aquele carrinho de bebê decorado com uns balões, tudo muito colorido, mesmo e apesar do cinza do dia. Se sentam, a mulher pega o bebê e o embala e o seu companheiro observa enternecido os dois.

Estragaram tudo: a foto perfeita e o dia.