sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Ok, vamos lá.

Buscarei seguir a estrutura da sua postagem até o quanto possível, o que faz com que eu tenha que iniciar com uma breve apresentação pessoal acerca do que toca o tema.

Estudei em escola pública a minha vida escolar e acadêmica inteira, excetuando o Fundamental I, à minha época chamado de "primário", que foi feito em uma escolinha de bairro e um ano em um colégio particular e mais um em um colégio comunitário, mas o primeiro e segundo graus (hoje, Fundamental II e Médio) foram em escolas estaduais do Rio de Janeiro e universidades federal e estadual, no RJ e no CE, respectivamente.

Sou professor por escolha, formação e atuação há cerca de 15 anos, trabalhando sobretudo na rede particular e, ocasionalmente, em projetos geridos pelo estado. Não apenas acompanhava, como era participante ativo de debates acerca da estrutura do ensino e da formação do profissional professor (sem mais tanto afinco no último ano por questões pessoais que fogem ao tema), e era inclusive palestrante convidado em escolas, sobretudo sobre Direitos Humanos e afins.

Sou de uma família de professores. Mãe professora, irmãos professores, ex-mulher professora, tias e primas professoras. A docência parece ser um gene dominante nos Borges.

Ter tido uma formação inteiramente feita em instituições pública me faz, além das minhas prerrogativas pessoais, a ter uma grande consciência de que sou um fruto do trabalho e do investimento da minha comunidade. Meus estudos foram quase integralmente pagos pelos impostos de cidadãos como eu e não estar atento a isso na minha carreira não é apenas equivocado como tremendamente injusto.

Dito isto, é preciso entender que a luta por melhorias no sistema de ensino nacional é algo que já acontece há mais de 25 anos.

Meu primeiro contato com a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) foi em 1992 (ou 1993, perdoem a falha de memória), quando fiz um ano de curso pedagógico, ainda no Segundo Grau. Eram poucos anos após a promulgação da Constituição, em 1988, e esta AINDA ERA UM PROJETO e mudava radicalmente o sistema anterior. É preciso salientar que, quando iniciei os estudos escolares, criança, ainda era o regime militar. Não havia PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), apenas um projeto disto e já era considerado um extremo avanço.

Ao ingressar na universidade, um "sistema único" ainda era mera discussão, o velho vestibular ainda era considerado como quase imutável. Mudou. Hoje há o ENEM, que ainda não é o melhor dos sistemas, mas foi outra conquista gigantesca e volta a estar sob ameaça, querendo-se retornar a um sistema que se pauta pela eliminação, não pela inclusão.

Entre a LDB de 1996, fruto da constituição de 1988 e sua última modificação, em 2006, muita coisa mudou, a esmagadora maioria delas para melhor, se for considerada a letra da lei. Muito ainda deve ser mudado, sem dúvida, dado acima de tudo o dinamismo das mudanças sociais.

Eu sou fruto de um currículo antigo. Na minha grade não havia Artes ou Sociologia, o que é lamentável.  Passei por dois colégios profissionalizantes e boa parte de meus colegas advindos dela possuem apenas os empregos de níveis técnicos, pois essa estrutura de ensino trava e bloqueia inclusive o acesso a universidades que teoricamente seguiriam as capacitações técnicas. Uma piada comum sobre a minha velha escola é que "o Henrique Lage forma funcionários da CERJ (hoje Ampla), da TELERJ (hoje Oi e afins) e músicos de barzinho". Eu saí de lá músico de barzinho. E lá não tinha curso técnico de música.

Durante a minha formação acadêmica, percebi o quanto havia de diferente  entre a lei e sua aplicação, tanto em relação ao sistema (governo e interesses das instituições privadas) e até mesmo pessoais, o que inclui, acima de qualquer coisa, a questão da formação do professor.

Dizer que "arte é fazer desenhos", "educação física é jogar bola" e "filosofia é ficar batendo papo", "sociologia nunca me serviu para arrumar um emprego" só demonstram como não é possível modificar um sistema sem que a filosofia social seja modificada primeiro e, para que esta mudança se dê, só existe um caminho: ampliar a educação através de profissionais capacitados. Entretanto, o que se vê é, apesar do extremamente alardeado número de universidades e vagas ter aumentado "nunca antes na história deste país" durante os governos Lula e Dilma (principalmente Lula), a proporção de formação de profissionais docentes sofreu uma grande queda. Esquece-se de dizer que boa parte dessas novas faculdades está formando "técnicos especialistas".

Haver uma profusão de maus profissionais, que não seguem as exigências curriculares, não é mais do que o fruto direto de um sistema que ainda tem por meta manter o pobre em condição subalterna e privilegiar quem já tem privilégios, ainda que se maqueiem algumas espinhas muito aparentes da face do sistema.

Este é um dos pontos mais tenebrosos das novas medidas: a efetiva invalidação das licenciaturas (ainda que disfarçada eufemisticamente de "admissão por saber notório").

Se já tem sido complicado ter um ensino de qualidade com quem tem obrigatoriamente que estudar Psicologia Evolutiva (ou seja, como lidar com a mente de crianças e adolescentes em transição), Didática (que vai desde como segurar um giz até como avaliar um livro), Estrutura e Funcionamento do Ensino Fundamental e Médio (que explica o passo a passo do seriamento de conteúdos e, efetivamente, as leis que regem o sistema educacional), imaginem ter ministrando aulas quem nunca passou nem perto disso. Imaginem ter aquele pastor amigo do diretor dando aulas de Filosofia (visto que estas serão "flexibilizadas", aliás, eufemismo máximo dessas propostas).

Não há como considerar de modo algum um pacote arbitrário e verticalizado. Certamente as vozes da sociedade e das comunidades devem ser ouvidas, o que inclui alunos, pais e até o Alexandre Frota, mas as considerações dos especialistas (e aí eu me incluo) foi completamente abafada em nome de interesses que nada têm a ver com melhorias de condições da população, menos ainda do crescimento educacional do país.


Para citar exemplos, verifiquem se em qualquer país minimamente desenvolvido existe a mera menção da retirada (ops! "flexibilização") de aulas obrigatórias de filosofia até o fim do segundo segmento (ou seja, o passo anterior à universidade). Verifiquem se há alguma "opcionalidade" em relação à educação física. verifiquem se os cursos técnicos têm, nesses países, a função de substituir algum grau do ensino básico.


Mesmo as grades curriculares da educação acadêmica no brasil são dignas de piada, aí sim, por sua falta de uma verdadeira flexibilidade. Estudantes de Jornalismo que não passam um semestre sequer nas cadeiras de Letras para aprender Português e Semântica. Estudantes de Física que não estudam Filosofia. Estudantes de Letras  que não estudam Lógica. Estudantes de Direito que não estudam Análise do Discurso. Estudantes de Música que não estudam Física (como Acústica).

Não existe nenhum ponto positivo nessas medidas anunciadas e estranhamente retificadas.

Eu poderia falar não apenas horas, mas semanas inteiras abordando cada ponto deste assunto e não será uma conversa de bar, será um esclarecimento em que eu precisarei de outros especialistas e de um retroprojetor e uma ponteira laser. O que não há é como ficar de achismos que se pautem no lugar-comum. Não é uma questão de "problematização". Medidas já foram propostas por gente como Chico Alencar (que é meu representante desde que eu possuo um título, principalmente por conta disso) e vêm sendo sistematicamente obliteradas pelos interesses obscuros de quem realmente domina o país.

Uma mudança que já vem sendo mais do que adiada não se resolve na base de polemização e canetadas, mas, se há algum ponto positivo nisso tudo, é que o assunto foi trazido à baila. Porém, já sabemos o quanto a informação neste país é manipulável, principalmente pelas falhas nas aulas de Sociologia, Filosofia, Linguagem e História.

Se o professor é o culpado, quem forma o professor é ainda mais.


A luta não é contra indivíduos. É contra o sistema. E o sistema, mais uma vez, mostra suas garras e dentes e nós caminhamos encantados em direção a eles pelo brilho que eles emanam.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Pitangus lictor

Quando a pedra se apaixona pelo pássaro, ela deve sempre lembrar que só o terá por alguns instantes, por muita sorte, se o pássaro resolver pousar sobre ela.

Se ela conseguir um meio de voar até ele, o matará.

À pedra, o quase imutável solo; ao pássaro, o ar, os galhos das árvores, talvez um ninho, mas sempre a brevidade.

Quando o pássaro se apaixona pela pedra, deve decidir se deixará nela alguma marca. E deve lembrar que, feita a marca, ela permanecerá.

Se ele um dia voltar a pousar sobre ela, ela se recordará. Mas não é dos pássaros lembrar.

Quando a pedra e o pássaro se apaixonam, eles continuam sendo uma pedra e um pássaro.

Não deveriam ser permitidos os sentimentos às pedras nem aos pássaros.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

FALTA UM NOME NO MEU SOBRENOME

Antes de adentrar no tema do texto a seguir gostaria de fazer duas coisas:
1. Me desculpar com todos os membros de minha família e explicar que não se trata de negação, rejeição e menos ainda de menosprezo a quaisquer de nossos antepassados de quem herdamos nossos nomes que nos unem.
2. Dizer que, caso algum dos meus conhecidos tenha um dos nomes ou cujo nome se enquadre nos parâmetros que citarei a seguir, que espero que saibam contextualizar e compreender minhas palavras e não considerarem como algum tipo de ataque pessoal.

FALTA UM NOME NO MEU SOBRENOME!

Recentemente, um desses aplicativos bobinhos do facebook me fez repensar em um assunto com o qual, vira e mexe, eu me deparo e que eu sempre vejo uma série de declarações pautadas pelo lugar-comum, mesmo entre algumas pessoas que considero bastante inteligentes, que têm por objetivo invalidar uma questão que toda diretamente na identidade de uma imensa parcela da população brasileira, aliás, americana. Gostaria de salientarque eu sei muito bem diferenciar um discurso de invalidação de uma real contestação e também de dúvidas reais.

Este aplicativo tenta adivinhar (na verdade, não passa de uma brincadeirinha com aleatoriedades, eu sei disso) a “descendência”(sic) das pessoas. Nem vou comentar sobre o usso errado do termo “descendência” neste caso, pois já tratei disso há algum tempo. O tal aplicativo me dava antepassados até na Austrália, mas em nenhuma das vezes que tentei apareceu que eu teria em meu DNA algum ancestral africano. Ora, eu sei também que não passa de uma brincadeirinha sem compromisso nenhum com a realidade, mas uma coisa me chama a atenção sempre que este assunto surge, inclusive em conversas menos descontraídas: boa parte das pessoas ainda tenta negar o direito do outro se declarar firmemente AFRODESCENDENTE.

As razões dessa negação não variam muito, sempre pendem para o lado das alegações de “ditadura do politicamente correto”, de “vitimização”, de “não se pode culpar agora as pessoas por erros passados da humanidade”... e muitas vezes quem deveria ter argumentos de defesa de uma ideia também acaba sucumbindo à tentação do uso repetitivo de palavras de ordem e bordões.

Pois farei agora duas afirmações, em caixa alta:

EU SOU UM AFRODESCENTENTE SUL-AMERICANO e, por causa disto, FALTA UM NOME NO MEU SOBRENOME.

É isso que muita gente, mesmo os “bem intencionados”, não percebe. Muitos desses já disseram, com orgulho, em algum momento na vida: “sou descendente de espanhóis”, “minha avó é italiana”, “tenho sobrenome polonês”; algumas vezes demonstrando até um bom conhecimento da história de seus ascendentes: “meu bisavô era um exímio sapateiro em Coimbra” ou “somos yonsei de uma tradicional família de lavradores”. Ok. Eu não tenho nenhum motívo, o menor que seja, para contestar alguém conhecer e afirmar suas ancestralidades, mas vou te contar uma coisinha sobre uns bons dois terços da minha árvore genealógica e também da de outros milhões de brasileiros): EU NÃO SEI A MINHA. E vou dizer o porquê de eu não saber: NÃO ME FOI PERMITIDO SABER.

Quando escravizaram e trouxeram os africanos para cá em navios do mesmo modo como fazem os caminhões clandestinos que transportam aves das granjas para os abatedouros, tiraram-lhes seus nomes, suas nações, suas profissões. Eram apenas “um negro forte”, “uma negra robusta”, “um negrinho rápido”. Eu não sei se meus ancestrais foram um agricultor do Congo ou uma sacerdotisa da Nigéria. Também não sei se tenho em minhas origens o sangue dos tapuias ou dos tamoios. Eu sei o meu Borges. Eu sei o meu Alves. Eu posso até ir mais longe e saber sobre os Tavares ou os Lopes ou Silva. Talvez, dessa herança, eu possa, um dia, pegar uma lata de azeite de graça no supermercado.


Mas é só isso e isso é só uma parte, ainda que ornada de bandeiras e brasões. Uma parte de três, eu diria. O que eu vou falar sobre as outras duas? O que eu vou falar sobre a maior parte das três? Nada me resta além de dizer “SOU UM AFRODESCENDENTE”, e direi isso com todas as letras e todas as nações que couberem nessa palavra. E peço... não. Eu EXIJO que levem isso em consideração toda vez que evocarem os seus sobrenomes de consoantes dobradas e semivogais de pronúncia complexa. Lembrem-se seus ícones midiáticos e seus patrões que atendem por “Ksyvickis”, “Michaelichen”, “Meneghel”, “Gentilli”, “Salles”, “Villela”, “Civita” e outros tantos. Lembrem-se deles e do orgulho que eles têm e que vocês também têm em portarem o nome de seus antepassados por tantas gerações e a possibilidade de fazer esses nomes permanecerem por tantas outras. E apenas não ouse, nem em pensamento, dizer que há uma “ditadura do politicamente correto” ou que há uma “opressão” por se fazer questão de afirmar suas raízes. E faça uma boa autoavaliação antes de tentar responder que “desse jeito todo mundo é afrodescendente”. Se você pensa assim, eu sinto muito. Você ainda não entendeu nada. E espero, sinceramente, que um dia possa aprender.

DISCURSO INDIRETO

Fui falar sobre você e não soube como te adjetivar.

Eu poderia dizer “amiga”, mas você sempre foi (nós sempre fomos) vários passos além disso e eu nunca te chamei assim.

As outras palavras e expressões que indicam o que eu sentia (sinto) ou o que nós tínhamos igualmente nunca foram aplicáveis e tampouco usadas por nós.

Para me referir a você, direta ou indiretamente, teu nome sempre bastou.

Fui falar sobre você e não soube.

E calei teu nome e o assunto.